O Mecanismo

o mecanismo

   Apareceram dois parentes distantes para visitar os pais do menino. Vieram de longe, como era costume foram recebidos com fartura. 

   Quatro dias de festa se passaram, quando a mãe do menino perguntou:

   "Por que seus primos se demoram tanto a partir, esposo?"

   "É que são muito festivos", o homem respondeu com impaciência, dando fim ao assunto.

   Quatro dias viraram oito. A mãe do menino perguntou novamente ao esposo o que fariam quando a comida acabasse. O marido disse que Deus proveria uma solução, ponto final. 

   A solução não caiu do céu. Oito dias viraram doze, quando a comida da despensa da casa do menino acabou. 

   "Não temos manteiga, nem milho, nem farinha. Não podemos matar um cervo, que a carneira está suspensa. Não podemos    oferecer rapadura, pois seus primos são muito dados a chiquezas. O que faremos, querido esposo?"

   O menino nunca tinha visto o pai com aquele olhar antes. O pai parecia assustado, o que era impossível, seu pai não tinha medo de nada nem de ninguém. Mas ali estava a prova, horrorosa, no rosto do único homem que o menino amava. 

   "Plic... plic...", gotejava a pia. 

   "Plic... plic...", e alguma coisa estalou na cabeça do homem.

   "Eu já sei", ele disse com esperança nos olhos. "Nós podemos usar o mecanismo."

   Na noite do décimo segundo dia, estavam reunidos à mesa de jantar. A cozinheira não estava na cozinha como de costume, nem a prataria tinha sido colocada ainda, o que causou estranheza no jovem e impetuoso primo mais novo, Eliezer. O primo mais velho permanecia parado, em silêncio e com os braços cruzados, logo atrás do irmão, ao lado da porta. Ele também parecia abalado. O pai e a mãe do menino estavam em pé do outro lado da mesa de jantar, rígidos, como uma presa prestes a ser subjugada. 

   "Não temos mais comida", ecoou a voz grave do pai pelo salão. "Pedimos perdão, estimados primos, mas vocês precisam partir agora mesmo."

   Um silêncio demorado fez-se entre todos.

   "Eu invoco a tradição", o primo mais velho falou. 

   "Mas primo", o pai tentou argumentar. "São tempos difíceis, não se vê alimento com tanta facilidade, tudo que vos oferecemos veio de nossas próprias terras, fruto de dois anos de colheita. Não comemos mais animais, e o solo teima em se recuperar da radiação solar. Não precisamos lavar roupa suja diante de toda família."

   O olhar do pai mudou, o que deixou o menino intrigado. Não soube dizer exatamente o quê, mas os pais estavam tramando algo. 

   Eliezer se manifestou.

   "São tempos difíceis para todos os que não têm fé, primo velho. Seus cabelos brancos lavaram seu juízo? Quando foi, nesses anos todos que viveu, que você e sua família passaram fome? O Pai e a Mãe supremos nos dão tudo o que precisamos para sobreviver. Além do mais, vai fazer bem conversar com nossa mãe velha, ela reclamou comigo, disse que vocês nunca mais apareceram para visitá-la."

   Fingindo surpresa melhor do que a esposa, e o menino agora reconhecia no rosto do pai uma expressão nova, o blefe, ouviu-o dizer com os ombros caídos que tudo bem, encontrariam o Pai e Mãe para resolver o dilema. Descortesia era uma acusação grave, o menino aprendeu sobre isso na escola. Era disso que se tratava, ele intuiu. O menino sabia que os pais estavam sendo acusados de algo, mas não compreendia por que, no íntimo, eles pareciam satisfeitos.

   "Você está destruindo essa família", o menino ouviu a mãe dizer ao pai aquela noite no quarto ao lado, enquanto estava deitado, prestes a dormir.

   "Essa família nunca foi nossa, para começarmos a conversa", disse a voz do pai. "Eu estou salvando essa família, para que outros possam também habitá-la."

   Não houve uma décima terceira noite para a família, exceto o Pai e a Mãe, que foram servidos primeiro. 


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