Bom dia, Sinhá

bom dia, sinhá

   "Hora de acordar", disse a voz antiga, sem nenhuma inflexão depreciativa, como um convite.

   O volume debaixo do lençol continuou quieto, não dava para saber direito onde começava o quê, nem se era bicho ou gente.

   "Está bem, tanto faz." Agora a voz soava ligeiramente indiferente. Um ranger nas dobradiças indicou o final da história, a porta fora fechada com delicadeza.

   O volume deu um sinal breve, sutil mas perceptível. Estava vivo, afinal de contas. 

   Uma mão espreitou preguiçosamente para além dos limites do algodão egípcio. Era humana. Branca, delicada, com as unhas aparadas bem próximas à extremidade ungueal, lustrosas porém em sua cor natural. 

   Fazia frio e estava escuro ali, logo a coragem esvaneceu e o membro retornou à obliquidade pálida do tecido, para longe do nosso curioso e indiscreto olhar.

   O Seiko de vinte e oito polegadas denunciava o adiantar das horas, mas era impossível enxergá-lo com os olhos fechados. 

   "Não são hábitos de uma dama de respeito o gosto pelos pleonasmos viciosos, nem dormir no momento em que os criados já desceram às plantações".

   Outra voz antiga, essa masculina. Do túmulo no British Burial Ground o pai conseguia se fazer ouvir. Em respeito aos mortos, obrigou-se a obedecer.

   A mão tornou a surgir, impaciente, titubeante, à procura de algo sobre o criado-mudo. Encontrada a campana, fê-la soar sua insistente vontade.

   "Com licença, Sinhá. Bom dia, Sinhá", entoaram as duas damas de cuidado quase ao mesmo tempo, um ritual que cumpriam desde adolescentes e que ganhara ares mecânicos com o passar dos anos. Seus movimentos pareciam cronometrados com as batidas surdas e obedientes do antigo e valioso relógio de parede. Em questão de minutos, o quarto tinha luz e ordem. Não parecia que alguém dormira ali.

   A mão agora tinha um corpo, sentado em frente ao espelho belga com detalhes da "art noveau" na moldura nobre. O moderno exemplar revelava uma mulher na faixa dos vinte anos, vestida numa camisola de linho branco decorada com babados, outra novidade do velho mundo que seu pai não aprovaria. 

   Enquanto uma criada dava os últimos retoques no quarto, a outra trabalhava em seus cabelos. Precisava parecer decente, hoje acertaria os últimos detalhes do casamento arranjado pelo finado pai. Mesmo a morte não consegue impor freios aos desejos de um homem.

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